segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Cadillac - Sonho de uma vida



Como era bonito.
Sonhara a vida inteira com aquele carro. Aquele modelo, com aqueles extras e precisamente naquela côr. Lindo. Quando o Sr. Frederico era jovem tinha as paredes do quarto cobertas com fotografias, recortes de jornais, notícias, comparações, tudo o que dissesse respeito a este carro. Agora, após uma vida de trabalho na construção juntando cada cêntimo, com os filhos já casados e "arrumados" e a hipoteca da casa liquidada, tinha finalmente dinheiro para o poder comprar.

Ali estava ele, o grande amor da sua vida á espera que o testasse, assinasse o cheque e o levasse consigo para casa. As suas pernas tremiam, não era simplesmente um carro, era muito mais que isso. Era uma paixão, um sonho de uma vida realizado.
Abriu a porta e lentamente sentou-se no banco do condutor, um banco em camurça cujo cheiro invadiu de imediato as suas narinas provocando-lhe um arrepio na espinha. O volante em madeira escura e cromados parecia ter sido feito à medida exacta das suas mãos. O tablier era digno de uma galeria de arte Perisiense. Cada friso, cada botão, cada pormenor, como vizinhas cuscuvilheiras na janela sorrindo, contando histórias dos que foram, dos que vieram e dos que simplesmente se foram deixando ficar. A harmonia entre todas as peças faziam deste carro não apenas um carro mas um corpo com vida, um poema, uma ode à perfeição.

Era chegada a hora por que esperara durante mais de cinquenta anos. Encostou-se para trás, abriu ligeiramente o vidro do seu lado e colocou o cinto de segurança. Ajustou o banco, os espelhos e certificou-se que o carro estava em ponto-morto. Da pequena mala de que sempre se fazia acompanhar retirou uns óculos escuros e umas luvas que usava há anos para conduzir. O vendedor qual guardião de tesouros mil, sorrindo colocou a chave na sua mão. O Sr. Frederico olhou para a chave e fechou os olhos como quem acabasse de receber a notícia de um falecimento. Uma lágrima surgiu sob os óculos escuros e desceu pela face, desviando o seu trajecto a cada ruga com que se cruzava e perdendo-se algures no farto bigode que tão orgulhosamente ostentava desde o seu casamento.
Tirou os óculos, as luvas e o cinto de segurança e saiu do carro. Entregou de novo a chave ao vendedor e saiu porta fora com o coração desfeito em mil pedaços.
Foram precisos tantos anos para encontrar um defeito no carro mas estava lá. Um defeito que pela sua natureza colidia com a sua identidade, a sua cultura e os ensinamentos que lhe haviam sido transmitidos pelo pai e pelo avô.

A chave. A chave era curta e extremamente grossa. Tão curta que por mais que se esforçasse jamais iria conseguir chegar ao fundo do ouvido e remover a cêra e tão grossa que tornava impossível o acto de limpar a  sujidade das unhas...
E isso... Isso simplesmente não podia ser!

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